Uma
manhã destas, indo da periferia para o centro de São Paulo, encontrei no trem
da linha oito Diamante _ Itapevi/Barra Funda _ um rapaz aqui do bairro, que eu
conheço só de vista, de idas e vindas bairro adentro, e de funk. Ele parece
barulhento e intimidador. Cumprimentou-me com um gesto “shaka” ou “saudação
bellamy”, não sei bem; sentou-se no degrau de divisão dos vagões, lugar onde
não me sentei devido a um pequeno problema na minha nádega. Perto de mim, falou
do Corinthians e dos candidatos à prefeitura, e acabou cantarolando um funk que
faz apologia política em meio a um monte de palavrões. Ele é um usuário
costumeiro daquele horário naquele vagão. A viagem não era curta, e os versos
pode ser que não fossem inteiramente maus, não fosse pelos erros absurdos de
português e as palavras de baixo calão, visto que os adjetivos eram
verdadeiros. Todos os dias ele fazia isso: funk e bazófias.
Em
alguns momentos pensei em mudar de vagão, mas não é fácil sair do trem quando
tem uma multidão querendo entrar, já que, nos horários de pico o trem parte e a
plataforma permanece cheia de passageiros nervosos que não conseguiram
embarcar. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, apertei os olhos três ou
quatro vezes; tanto bastou para que ele fizesse uma piada e interrompendo minha
leitura enaltecesse, em alto e bom som, os versos do seu ídolo. Depois, fazendo
uma careta, demonstrou repulsa pelo livro grosso eu lia, ou talvez pelo meu
jeito. A saber, meus hábitos no trem eram escrever, a leitura, cochilar ou
silêncio, apenas.
—
Bons versos, disse eu acordando receoso.
_
Ah! Sei que você não curte; você curte é MPB. Coisa brega! _ e riu com desdém.
_
Depende do momento. Mas tem de ter qualidade.
—
Tá, continua lendo, não quero atrapalhar sua leitura, murmurou ele rindo.
—
Tudo bem.
Vi-
lhe fazer, com a boca, um gesto de percussão para cantarolar outra vez, mas não
passou do gesto e pequenos ruídos de duas notas sonoras espremidas entre os
dentes; sentiu-se meio acuado pelos olhares. Eu, ao fechar os olhos novamente, só
ouvia ruídos, as vozes abafadas, tudo ficando distante, o corpo esmorecendo até
que o livro caiu das minhas mãos. Houve um ligeiro
silêncio; depois gargalhada, e descontração, muitos cumprimentos, fofocas,
lamentos e vanglórias.
“Que bom! _ pensei,_ pela manhã, um pequeno incidente sempre proporciona um
diálogo, aproxima as pessoas; isso quando não rola um quebra-pau.”
Naquele
dia senti mal-estar o dia inteiro. Cochilei durante as aulas e no ônibus em
todo o percurso para o trabalho.
No
dia seguinte o rapaz entrou e logo foi olhando para todas as faces, procurando
por mim: _ Cadê o cara do livro?_, e se sentando dizia que me conhecia, que era
meu amigo, eu era poeta, bebia todas, _Ufa! E vivia nos bares antes de voltar a
estudar. Dizia coisas, assim, desagradáveis _ meias verdades _, que acabaram
apelidando-me poeta entre outras
pilhérias. Todos os passageiros, exceto eu, aderiram; e até admitiram
gostar de pessoas com tais hábitos recalcados, jeito calado e inofensivo, e que
gostariam de se acostumar à prática da leitura, a poetização ou outros
semelhantes.
Deram
curso a tais atributos, que afinal tornou a viagem mais agradável. Nem por isso
consegui me descontrair. Sou mal-humorado, principalmente pela manhã. Quando
acordo já começo a cantar silenciosamente, exagero debaixo do chuveiro e crio
versos, rezo ou converso comigo mesmo o tempo todo, só para controlar meus
nervos. E até esse diálogo íntimo me aborrece. Agora a minha mania é só fazer
textos críticos, mas eles se desenvolvem deformados pelos meus traumas
pessoais. O emprego e o casamento são as principais
causas. Os
agravantes me transformava noutra pessoa que às vezes me assustava. Esse
problema me fez perceber que somos de natureza mutante. De manhã se é um e de
tarde outro. Agente se acostuma, embora não se aceite; ou vice-versa. Após
algum tempo naquele novo trabalho eu estava me transformando aos poucos nesse
sujeito inconveniente, nervoso. Será que eu era mesmo um membro importante da
“Família Teleperformance”? Sentia-me útil à empresa, prestando serviços
para o provedor UOL, o maior provedor de serviços online do Brasil; sentia-me
útil aos clientes, mas algo estava me corroendo...
Contei
a meu médico _ meu médico é um jeito mentiroso de dizer, perdoe-me. Contei aos
médicos do convênio sobre essa irritação que me tirava o sono à noite e me
fazia sentir sono todo o dia, e até dormiria de pé, andando, caso ousasse
fechar os olhos por alguns segundos.
Primeiro
consultei o clínico geral, esse me encaminhou para o gastroenterologista que,
por sua vez, me recomendou um dermatologista. Os profissionais mais dedicados
conseguem se aprofundar nos sintomas, que mesmo agente ignorara, e chegam a um
diagnóstico mais provável. Quando é assim a verdade sai. Juntando tudo, foram
unânimes no diagnóstico: “stress; e pode levá-lo a uma parada cardíaca a
qualquer momento.” Acordaram.
_
Saía urgente dessa área de telemarketing; conheço pessoas que estão jogadas por
ai por conta desse tipo de serviço, alertou-me o médico da vez.
_
Não é pra tanto, pensei.
_
Você vai me trazer esses exames _ continuou, enquanto prescrevia a receita e
preenchia a guia _ só me apareça aqui com tudo em mãos, e traga essa receita
com o carimbo da farmácia.
_
Tão grave assim, doutor?
_
Gravíssimo! É pra assustar mesmo. _ ergueu os olhos e me entregou os papéis. _
Estou de afastando por dois dias, descansa e pensa se seu trabalho vale mais do
que sua vida.